sexta-feira, dezembro 23

Rua das flores lindas.

A rua desce. Sinto melancolia com a multidão que abraça o frio. Caminho só e acompanhado por quem passa. Rostos desfigurados pela corrida chocam ou desviam-se antes do último momento. Se tivesse de escolher uma rua como favorita – seria esta. Foi nela que inesperadamente te abracei e acreditei em tudo. Espreito, procuro-te ao longe: não te encontro. Paro. Respiro. Faço amor por breves instantes com a minha máquina fotográfica. Jurámos eternidade para o nosso amor. Levo-te, levo-a ao colo. Congelo um momento. Eternizo outro. Perco por um breve instante o sorriso de uma menina que passa. Acaricio o obturador, faltas-me tu. Espero pelo momento do disparo. Silencioso como um predador, sustenho a respiração e aguardo que as minhas personagens componham a cena. Cena que não sei se existe ou existirá. Continuo a suster a respiração: “click”. Encontrei a composição certa. Canso-me. Paro. Sento-me no café onde te sentaste. Relembro as tuas palavras. O mesmo empregado vem atender-me. Não tarda – um chá fumegante repousa numa chávena que anseia pelo toque dos meus lábios, eu anseio pelos teus. As pessoas param e estranham o meu sorriso. As vividas entendem que sorrio de felicidade. Sorrio ao repescar as tuas palavras, beijos e abraços. O dia cai. O inverno é mesmo assim: rouba o conforto e persegue a luz. Senão é pela hora, envia nuvens carregadas de sei lá o quê. Paro, fecho os olhos e sinto o vento. O vento que sempre me mimou. O vento frio que senti quando te foste. Lembro-me: levantei-me e fui para as escadas do metro. Beijei-te. Abracei-te. Soltaste nesse fim de tarde – o teu olhar. Um olhar muito teu, que me estilhaça com a sensação de carinho, me entorpece com a força e me deixa sem chão com o enigma. Os teus olhos são a fronteira que eu tenho para espreitar o teu coração e a tua alma. Nesse dia brilhavam num azul mais celestial que o céu. Como estavas incrivelmente bonita, sabes? Soltei a tua mão, começo a escalar – ao contrário –as escadas. Parei pela última vez: olhei para ti. Precisava de acreditar que ainda lá estavas.
Como eu queria que me emprestassem talento para escrever sobre a Rua das Flores e acima de tudo: sobre ti.

quinta-feira, dezembro 22

A Cinderela e o monstro

I.
O pano cai no teatro da avenida. Avisto-te. Escondo-me por de trás da cortina. Assusto-me: as palmas não param. São minutos que passam devagar. Não são para mim. Eu apenas puxo e desço a velha cortina dia após dia. Dantes tinham uma velha máquina, mas esta praguejava mais do que eu e a sua velhice comprometia muitas vezes: fechava muito devagar e ao abrir soltava um ruído metálico ensurdecedor. Quase me sinto parte do teatro. Já sei os diálogos de cor.

II.
Todos os dias espero que entres em cena. Não resisto e devoro com o meu olhar os teus lábios carnudos e tenros. Por mais pessoas que já tenhas beijado, sinto-os meus – mas ao longe. Parece que mesmo assim o calor deles me toca e por vezes me turva a vista - como se embaciasse os meus óculos. Apenas desvio o meu olhar quando beijas o Viriato na cena final. Sonho ser ele, longe dos holofotes e sem precisar de descer – logo de seguida – o pano que divide a peça do mundo que a devora atentamente.

III.
Se pudesse sopraria ao teu ouvido: amo-te. Suplicaria para que embrulhasses os meus sentimos e conservasses esse presente – sempre junto ao teu coração. O mesmo que eu sinto à distancia quando te entregas ao papel da Margarida. Uma mulher que sofre de amor do primeiro ao último ato e que termina enganada: beijando o homem errado. Um homem que conserva ainda o calor e a saliva da mulher que beijou à porta de um bar. Embriagada, embriagado fingiram ter prazer no meio do nevoeiro de Londres.

domingo, dezembro 18

Fancaria

I.
Momentos resgatados saltam-me à memória. E o mar ainda bate na rocha. Ainda sorrio com um olhar de uma criança. Continuo a esperar por um abraço. Minto quando não deixo que invadam a minha solidão. Resisto à tentação do calendário e não acabo com o ano. Espumo quando ouço: “Para o ano vai ser melhor”. “Paro o ano é que vai ser”. Viajo sempre à velocidade da luz – sou um privilegiado (?): o tempo tenta, mas não consegue ser um ditador. Apenas me observa, apenas me ajuda a construir uma memória. Lembra-me, sim, da agonia de não ser o que queria, de ser pior do que sonhei vir a ser um dia. De cada ruga que carrego e que serve de caminho para uma lágrima perdida, que sempre se escapa – no meio duma música. Habitualmente: danço; viajo; corro e perdoou-me, só.

II.
Sinto frio, este mundo congela-me. Sinto que muitos tapam os ouvidos e choram sós. Esperam que o artilheiro sucumba. Também – ele- um solitário -escondido numa consciência vendida pela raiva. Pedem a um Deus que se encrave o gatilho que espalha o sangue por Alepo. Que importa se é preto ou branco, esse Deus. Que ele do alto solte a ordem para que os anjos abracem quem sofre. Que, pelo menos arranquem num voo rasante – as crianças das bombas que raivosamente queimam a vida.

III.
Escorrego e tropeço: como uma bomba rebento um saco de plasma que se perdeu no labirinto. Corro cautelosamente, não quero tropeçar num sem-abrigo. Vendo a alma para pagar a ceia a quem não a tem. Abraço um refugiado. Ajoelho-me junto a um terrorista: peço clemencia. Deixo-me ir, a correr egoistamente – empurro um desempregado. Ajudo à atravessar a rua, é uma criança perdida no mundo; é um pobre com fome; é uma alma que pena pela cidade. Tudo isto numa cidade que adormece, que se deixa enrolar na escuridão. Que se deixa iludir pela paz de fancaria.