quarta-feira, julho 20

Cheiro do Vento

A avenida despida e fria é sacudida pelo vento forte que anuncia o Verão. O frio matinal abraça-me. Corpos sonolentos quase chocam comigo. Pássaros soltos anunciam a manhã.
Deixo a avenida e começo a subir para os Clérigos. Em piloto automático acelero o passo. Desvio-me, troco olhares – caminho. Chego rápido e cedo demais. A porta apesar de fechada não consegue esconder a opulência do lugar. Tropeço com dois turistas que enfrentam a fila da porta. Desespero; inspiro e espero. A porta abre-se: já sinto o cheiro a livros. O vento teimoso e revolto faz bater a porta. Paro por uns minutos e contemplo. Uma senhora quase me empurra para logo de seguida me lançar um pedido de desculpas (presumo) numa língua que desconheço. Subo a escada. Viro à esquerda, viro sempre à esquerda. Sei que é por esse lado que desces e quero cruzar contigo. Já na parte de cima, procuro o livro que lês-te no dia anterior. Quero percorrer cada letra, cada palavra que enfeitiçou o teu olhar. Sim: ainda ontem sorrias enquanto lias um livro. É fácil de perceber que cada livro deixa um bocado de si no leitor que o devorar com respeito, mas também acredito no oposto: deixamos um bocado de nós nos livros que lemos. Por isso só empresto os meus livros a pessoas especiais, quero egoistamente sentir o que de bom o livro traz quando regressa à minha estante.
Volto ao livro que seguro na mão. Agarro na capa, prendo o livro ao meu peito. Por momentos sinto-te. Sento-me. Abro o livro e procuro-te na livraria. Já passa das 9h e ainda não chegaste.
Ontem escolheste um livro do Mário Quintana, leio baixinho uma parte e fico a pensar no que tu pensas quando o lês:

“No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas
que o vento não conseguiu levar:
um estribilho antigo
um carinho no momento preciso
o folhear de um livro de poemas
o cheiro que tinha um dia o próprio vento...”

Já é tarde, a luz fugidia enjeita com todas as forças que tem - a escuridão. Desço as escadas, agora pelas escadas da direita. Despeço-me. Bato porta e salto para a rua. Um último olhar procura por ti. Desço a rua, aspiro todo o ar que consigo e espero sentir no cheiro do vento – o teu próprio cheiro.