quarta-feira, setembro 30

Alma despegada

O nevoeiro cai. A madrugada aparece. O momento mais belo onde a noite se funde com a alvorada: acontece. Os candeeiros enfeitiçados pela penumbra persistem a iluminar o iluminado. Hoje apetecia-me fugir de mim. Despegar o corpo da alma. Viajar pelo mundo com a leveza que se deve sentir. Não estar condicionado pela gravidade. Flutuar. Planar pelos vales, quase tocar no verde ou nas rochas afiadas. Sempre sem medo de magoar a carne. Será que assim afastaria a dor do meu peito, do meu coração?
O coração é feito de carne doce e fel (ao mesmo tempo). Tento sempre espremer o doce e deixar o fel perdido no fundo. Fazer de conta que não existe. Mas sei: esquecer o existir nem sempre resulta. Mas a esperança que o doce se vá acumulando e altere o azedume é legítima. É parecida com a eterna luta do mal e do bem, que nunca acaba. Se o mal acabasse ninguém se deliciaria com a pureza e leveza do bem. Com o tempo o bem seria a monotonia, a normalidade. E essa seria a semente para que o mal aparecesse. E tudo se reiniciaria. O que seria da bussola se perdesse o Norte? Perderia também o Sul, o nascente e o poente. Será que eu saberia amar da mesma forma, se não cruzasse com pessoas que no outro extremo – me amam ao contrário. Pessoas que têm o coração virado do avesso. Pessoas que adocicam o chá com sal (sem o saber). Também é branco e também se dissolve com o tempo. Se calhar ninguém lhes mostrou a doçura do mel. Por isso: não entendem as abelhas e as colmeias. A sua harmonia que brota na natureza. As flores que pousam e beijam enquanto alegremente voam de flor em flor. Porque o fazem? Foi imposto por um criador, pelo acaso ou recorrendo à resposta menos comprometedora do mundo – foi a natureza que o quis assim. As moscas são feias de mais para essa tarefa, por mais que tentassem dissolveriam a beleza do momento, não o conseguiram. Mas se eu fosse mais feio – não me amavas? Se eu fosse igual em tudo mas no meio de um corpo deformado, perderia o teu olhar. Prefiro aceitar com resignação que a natureza e cruel (desta vez).
Desculpa, perdi-me. O coração é mesmo feito de carne. Carne que sente uma caricia, um toque, um mimo, um abraço, um ardor ou o amargo da dor. A alma arrancada do corpo, perderia esse dom? Creio que não. Sentir é um dom ou uma maldição. Depende do mel que por dentro nos enche e nos dá um sorriso no olhar. Amar é o processo mais sublime de todos. Será certamente a vibração mais intensa do coração, mais forte que o seu batimento – que apenas alimenta o corpo. Corpo, esse que deambula perdido pelo tempo. Tempo que corre e lentamente o vai sufocando, até o final. O amor não pode morrer com o corpo – o sublime e o belo persistem na eternidade.