segunda-feira, junho 19

Mar-e-azia

A noite ainda é rainha. O sol empurrado para um canto espera ansiosamente pelo seu momento. As ruas despidas de pessoas vivem da luz que brota dos candeeiros. O negro do alcatrão resiste impávido, frio, húmido e sereno. A maresia leva a revolta do mar a sítios inimagináveis. Um obturador perro e velho resiste ao meu dedo. Por momentos, perdi o momento que senti. As mãos geladas e sem abrigo –não ajudaram. As minhas pernas resistem o que podem. Os olhos pesados criam fantasmas envoltos em sombras esparsas.

Pedalar durante a noite é libertador. É como se o mundo fosse só meu. Como se uma praga terrorista disfarçada de fungo venéreo tenha atentado contra a vida humana e se tenha esquecido de mim. Resisto a tudo e pedalo. Só preciso de uma parte do meu cérebro. Só preciso de contrariar a dor dos músculos e pedalar. Conseguir ir contra o vento. Conseguir ir a onde a bicicleta me quiser levar. Assim é bem mais fácil. Como um papagaio solto ao vento deixo-me ir. Deixo que a vida faça das suas. De que vale contrariar a natureza das coisas e das pessoas. Se o fim estiver escrito, dirão: pedalou até morrer.

Paro e admiro a natureza e a força do mar. Peço piedade a Neptuno. Suplico-lhe que com um sopro de maresia verta no meu corpo toda a juventude e irreverencia que se perde como o gás duma bebida. Como numa bebida azedada espanto pessoas que me queiram tocar na prateleira. Fecho os olhos e sinto a maresia: como ela me acaricia, despertando-me com o gelado da água que transporta em si. Que se lixe senão me ouvir, penso eu.