sábado, outubro 29

Perfume de perdiçáo

No meio dum monte perdido – uma floresta densa e sombria deixa cair o pano. Aqui não manda o bastão de Molière. Acampamentos de refugiados do pensamento povoam. O ar rarefeito deixa as suas moléculas a flutuar à espera de serem sugados por bocas sôfregas. Um mar de arvores expelem pelos seus poros o que conseguem. Romarias de homens e mulheres procuram as suas verdades. Muitos cansados espalham longas cordas que lhes acariciaram mais tarde o pescoço – no momento certo.
Demónios, espíritos malignos e almas que penam são o elenco dos perdidos. Corpos enrolados, corpos putrefactos soltam o seu ar pestilento. Corta o nariz e sente a beleza do monte Fuji.
Os mantras em surdina pintam a banda sonora do momento. Os últimos pensamentos passam vezes sem conta num filme que termina na morte. Procurar a morte é querer uma vida nova; é esperar um novo papel num argumento virgem esboçado pelos deuses do além.
A libertação acontece – acompanhado por um último estremecer da corda esticada: pernas e braços que tremem num último ar de agonia da libertação. A eminente passagem de portal acontece. A dor e sofrimento dilui-se como quando aplicamos o ácido mais forte da terra no pedaço mais deliciado do nosso corpo.
Alguns desistem, mas muito vão em frente. Os que regressem penam com o peso da vida que continua. Os que atravessam o portal seguem a sua caminhada numa dimensão desconhecida à espera do esperado, rezando para que lhes matem o sofrido.
Corpos cinzentos e verdes oscilam como num circo e para terror de quem os avista.
Reza uma lenda de quem os vir para sempre perderá a sua visão da vida.

quarta-feira, outubro 26

Vida de gato

Os pneus rasgam o alcatrão: um chiar intimidante e constante estilhaça o silencio da noite, o rugir das minhas palavras taciturnas. No meu lado direito sinto a bravura do mar e as suas ondas fortes que tudo abalam, roem e moem as rochas solitárias que ornamentam a costa. Em contraste com o canhoto onde uma risca branca e intermitente me castra a tentação de pisar o risco: acelerar em contramão até a exaustão e fugir da morte com um guinar brusco do volante. O escuro da estrada atira-me para o desafio do desconhecido. Mas o escuro pouco diz; desperta a curiosidade; acelera o medo; leva à dependência – agarra um qualquer desprevenido. É preciso conhecer, deixar a alma vaguear por essas bandas e por algum tempo para entender o que é viver. Não ama quem não sentiu desamor. Não é feliz quem nunca provou a tristeza. Não se aprecia a companhia quando se foge da solidão. Sente-se o escuro cada vez que morremos: um amigo que se esfuma; um amor que se estilhaça; um momento feliz de mentira ou quando perdemos de vista quem gostamos, quem amámos.
Os gatos são mais felizes – só têm sete vidas.
Os sentimentos rasgam o coração: uma dor profunda ou um ronronar que reduz a importância do todo. Por um lado, a coincidência de um encontro: pessoas estranhas que se entranham, sem no inicio perceber o porquê. Um carinho que se troca – sem ser vendido. Uma mão que puxa a outra. Um abraço forte que aperta o coração. Um coro de corpos que se liga na mesma melodia, na mesma sintonia. Uma nova vida que nasce e amacia as pedras que habitam no coração e alma do paciente. Uma torrente que ao contrário das ondas bate, bate com mais veemência e de forma constante, sem, no entanto, impedir que os corpos se entrelacem e adormeçam amparados. Não se ama quem se quer. Não se consegue escolher um amante como não se escolhe quem é bom amigo. Só o amor tem a força suficiente para estraçalhar o vicio da solidão.
Os gatos são menos felizes – não escrevem sobre amor.