quarta-feira, agosto 5

Abrigo

I.
Parece que foi ontem que nos cruzámos numa viela do Porto. Num caminhar melódico senti o toque dos teus sapatos altos em cada pedra da calçada. A tua silhueta rasgava o vento, enquanto o teu vestido bailava solto definindo o teu rasto. Senti-te alguns bons metros antes de nos cruzarmos. Uma breve troca de olhares perfumou o meu dia. O sol tolheu a minha vista mal a tua silhueta passou. Abriste uma frincha de luz perigosa e forte. O tempo pareceu sucumbir aos teus pés – eras a única personagem viva da rua. Subitamente, recordo-me do fechar estridente de uma persiana que me fez tremer.: olhei e já te afastavas em passo apressado.

II.
A lua não escondeu o seu luar. Num fenómeno raro e mágico espelhou um azulado que irradiava suavemente. Parado no meio da rua, procurava seguir o indesejado movimento da lua. Minutos a fio, fui-me posicionando para não perder o fenómeno feiticeiro. Não senti o calor do verão, a minha visão era o único sentido activo. Por vezes procurei o amparo de uma parede para vencer o cansaço do dia ou os exageros duma noite a acabar.
Ao longe, senti de novo um caminhar a ecoar numa cadência que me pareceu familiar. Primeiro na forma de um som tímido que a cada minuto se agiganta e me chama a atenção. Sucumbo à tentação de trair a minha lua e desviar o olhar para o passeio.

III.
Não resisto mais – desvio o meu olhar. Tremo, sinto um arrepio que se transforma em dor nos meus músculos cansados. Como é que neste sítio improvável revejo a mulher que me deslumbrou no dia anterior?
Acredito que as pessoas não cruzam na nossa vida por acaso; que partilham uma carruagem de metro só porque se levantaram da cama na hora conveniente; que nos vencem num sorriso quando com elas nos cruzámos por pura sorte ou que nos traíram no passado por ironia do destino traçado.
A certa altura não entendi se o tempo abrandou ou se foi o teu passo a abrandar. De repente uma distância pequena: eternizou-se. Pensei: devo tentar inventar uma conversa da treta que te faça parar à minha frente? Será a minha última chance?

IV.
Acompanhei com o meu olhar tímido os teus últimos metros. Quando me sinto: estás sentada na calçada a meu lado. O teu olhar profundo e forte - atordoa-me. Do nada, sinto a tua mão (que está fria) a procurar a minha. Para logo de seguida desviares o teu olhar na direcção do rasto azul que (ainda) enfeita o céu.
Em silêncio aqueço a tua mão e acompanho o teu olhar. Naqueles minutos de silêncio – nunca uma mulher me conseguiu dizer tanto. Quando amanheceu arrancaste-me a tua mão e desataste a correr. Fugias de um desconhecido que tinha