terça-feira, abril 18

Recordar ao vento

A luz que se esvai entra pelas frinchas duma janela mal fechada. Enquanto, uma voz esganiçada insiste em tanger algumas moléculas de ar (rarefeito) num fado malvado. Um pechiché resiste ao tempo e serve de amparo para velhas fotografias. Imóvel no (meu) escuro irrompo pelo baú das recordações. Dizem que recordar é viver, não, não é. Recordar é viver o vivido porque nada de novo ou interessante se está a passar nesse momento. Recordar é uma alavanca cega para uma lágrima seca que cai por dentro ou para um sorriso terno que vem de dentro. Só não recorda quem ainda não viveu. Mas, só teme esse mergulho quem largou a mão de quem o ia salvar. Quem desistiu de procurar a luz que aquece a alma e o coração.

Um relógio de cuco irrompe pelo quarto: um canto artificial lembra que o tempo se esvai. Que a nossa oportunidade está a acabar – é sempre assim que leio o passar dos segundos. Nunca me arrependo do que não fiz. Não posso perder tempo a decidir. Tenho de fazer o que acredito deva fazer. Temo ficar preso a uma indecisão e aí sim - arrepender-me. Arrepender-me severamente: magoar alguém; já não ir a tempo de agarrar a mão que com dor se estica até ao infinito para me salvar; de chegar tarde e o teu corpo já boiar inerte num oceano qualquer. Arrependo-me do que fiz. Transporto comigo esse arrependimento como uma cruz pesada e áspera que carcome a alma. Com tanta dor que arde como um sal que cai numa ferida em carne viva, que desentranha o entranhado, que rompe e cresce como uma fogueira que começa nos pés e só pára quando a cinza se desintegrar em pó que foge no vento.