terça-feira, outubro 18

Diluvio do tempo

A chuva finge que cai. As pingas soltas precipitam-se numa queda abrupta. Numa esplanada solto a minha vista. Um charco perto exibe o reflexo da multidão que passa. Um horológio escondido pelo cinza da manhã verte a sua melodia: tac, tac, tac, … O pesado ponteiro escorrega sempre que se aproxima do bater da hora: num movimento perpetuo sobe e cai empurrado pelo peso do tempo, das gotas de chuva que apesar de pequenitas formam uma milícia invencível. O senhor João já tentou ajudar o velho ponteiro na sua tarefa, mas este empurra tudo e todos, quando se aproxima do ponto mais alto.

Um pequeno cão encharcado corre pela rua. É bonito, tem o pelo malhado como dizia a minha avó, quando eu ainda era um catraio. Perdido e assustado procura com o seu olhar a cadela que outrora o encantou com o cio. Procura nas paredes e no chão ecos do seu perfume. Parece ser o único no meu cenário que mal se importa com o velho e moribundo ponteiro que, entretanto, cai novamente: ora vai para o IX, ora aguenta-se no X.

A Dona Natércia chega e olha para o velho relógio por segundos, pragueja e abre violentamente a grade que protege o seu quiosque antigo. Pega no agasalho e senta-se num velho banco. Escolhe um jornal e percorre o obituário com os seus olhos cansados. Procura todos os dias ver se conhece alguém pelas fotos. Teme que alguém a chame, cada vez que descobre alguém conhecido que se deixou ir. Alguém que agora suporte o peso da terra molhada ou o encanto do céu. Quem já andou de avião sabe que mesmo por cima de uma tempestade - o sol brilha. De vez em quando deixam uns pedaços negros de algodão molhado que vão soltando gotas e mais gotas sobre nós. Quando não chega, soltam-se trovões poderosos que até os animais assustam.

Pelas minhas contas, o velho ponteiro já tentou escalar o quadrante mais de uma vintena de vezes. Tenho de me ir. A minha gabardine já não suporta a chuva. Sinto-me molhado e frio. Assim, ainda fico doente, penso eu. Levanto-me e caminho para norte. Conheço um atalho por ali, é um bocadinho mais à frente. Seguem-se umas escadas escuras e logo chegarei. Não sei se esperam por mim, mas tenho de ir.