terça-feira, março 1

A rapariga do Douro

Uma porta pequena e escura mal se consegue ver. Tem uma soleira alta e recuada para se proteger da revolta do Douro. Nalguns Invernos o rio desiste de ser guiado “às cegas” pelas margens de pedra e areia. Despeja toda a sua raiva: salta todas as barreiras que os homens lhe impuseram e explora o que não conhece. Hoje está calmo. Repousa ao fundo: apenas se consegue sentir o chocalhar dos barcos ancorados contra as ondas tímidas que vão surgindo do Douro. O Inocêncio sai a correr e quase tropeça na Ana. A Ana continuada impávida e serena a olhar para o Cubo. Está vazio de turistas. O Inocêncio termina a sua corrida num pequeno e podre cais. Turistas de olhos em bico começam a sair. Pode ser que eles queiram “souvenirs” – pensa ele. Não quer saber se lha pagam em Ienes, Euros, Yings ou Yangs. Que lhe levem o peso que molesta as suas costas. O seu dedo amarelado, pela beata ardida que não o larga, segura um pequeno maço de notas (para trocos). Saem sempre apressados – pensa o Inocêncio. O negócio vai de mal a pior. Fugiu do negócio do peixe com medo do mar e agora vive com o medo de não conseguir alimentar a sua família. A mãe dele bem o avisou que os turistas de olhos em bico só compram coisas que fazem os ocidentais também ficar de olhos em bico…
A Ana continua sentada e a contemplar. Sente a nostalgia de uma manhã solitária. A adolescência já se lhe escapuliu do corpo. Não pensa o que quer ser. Não abraça o destino – tem dias, diz ela. Pensa no Pedro e sente um aperto no seu peito. Aperta com força o seu piercing no nariz, prefere a dor física à dor do coração. Sente-se a definhar. Solta os pensamentos mas a imagem do Pedro (sempre) volta.
O Pedro corre para ela, abraça-a e solta um sorriso cristalino – como só ele sabe. Agarra-a, suspira e consola-lhe o ouvido:

- Amor, sinto-te, mesmo quando a nossa vista não se cruza.

Ana sorri e não tarda em o embalar num beijo. As mãos estão entrelaçadas pelo amor. Juntos caminham a contemplar o rio. O céu azul e milhentas nuvens embelezam o momento. Se estar apaixonada é ver o lado bonito e poético da vida – que morra apaixonada, pensa a Ana. Não tarda estará ai a noite. Não adormecem – preferem tocar os seus olhares. Os olhos do Pedro são escuros mas transparentes para ela. Resistem. O corpo cede. Está na hora de entrelaçar os dedos dos pés.
Como seria bom – se tudo isto se repetisse. Se acordasse e não pensasse em nada. E pudesse apenas sentir o coração cheio do teu amor – já me alimentava, pensa a Ana. O seu vestido já está manchado de um vermelho vivo. Nesta viagem pelo amor – que se foi – continuou a apertar o seu nariz. Um piercing solto envolto em sangue, é o que lhe resta. Seria ela a rapariga errada para o Pedro? Achou que sim, hoje sabe que estava errada. Não a consola pensar que foi o destino. O Pedro não teve culpa. O Pedro fez tudo para não a largar. Uma noite dormiu ao relento, cansado de lhe implorar que não desistisse dele. A Ana, nessa altura, achava que o amor era portátil.: ia no seu coração fosse qual fosse o seu caminho. Que iria amar no culminar de um novo orgasmo proporcionado por um qualquer turista que lhe piscou o olho. Que o acenar num adeus seria o abrir a porta a um novo amor, dizer: estou aqui, aparece quero-te diferente, novo e desconhecido. Tal como os barcos que chegam com turistas ao pequeno cais e partem sem qualquer saudade, também pensou que seria esse o destino do seu amor. Sempre foi assim – porque seria diferente desta vez? Mas com o Pedro foi. O Pedro partiu. Na altura foi tão egoísta que nem lhe perguntou para onde iria? Talvez ele não lhe respondesse. A dor era tanta que só queria desaparecer, ir para longe. Fugir também do Douro que tinha a impressão eterna da imagem da Ana – distorcida pelas pequenas ondas que aparecem. Na altura a Ana também achava que não queria saber. Lembra-se de lhe dizer ao ouvido: sou a rapariga errada para ti, vai-te.