quinta-feira, julho 23

O meu irnão

I
Acordas cedo quando eu acordo tarde. Nunca me acompanhaste numa festa, numa saída com amigos ou nos meus melhores e piores momentos. Confundem-nos: és o meu irmão. Ambos de estatura média e medianamente atraentes, não é difícil que nos achem a mesma pessoa. Não fora um discreto sinal na cabeça que tu tens e eu não e seriamos a mesma pessoa em dois corpos diferentes.
És preguiçoso: raramente compras a tua roupa, preferes acordar a meio da noite, enquanto durmo e escolheres qual a minha roupa que te fica bem. Desde miúdos que combinámos escrever ao fim do dia um bilhete. Nesse bilhete minuciosamente redigido, descrevo-te o que irei fazer e com quem irei estar. Mesmo nos imprevistos e surpresas – até hoje nunca nos cruzámos. Eu acho que tu foges se me vires por perto. Já passaram mais de quarenta anos e continuo sem te encontrar, apenas sinto, muito raramente, o teu vulto no escuro do quarto. Nunca me tocaste. Sentas-te junto à cama, sei que me contemplas e logo de seguida foges. Isto sem antes recolheres o bilhete com os meus planos para o dia seguinte. Lembro-me de que um dia, de propósito, deixei-te um bilhete vazio, apenas com um ponto de interrogação no meio do branco do papel. Não sei se o fiz porque te queria encontrar, te queria ver ou se o fiz por estar furioso. Passei o dia a olhar à minha volta, quase em angústia. Combinei cafés (sim, ainda tomava café) com as pessoas mais improváveis na esperança que também aparecesses – não apareceste.

II
Vou começar a tratar-te pelo “outro” na minha escrita. Não por desprezo ou desrespeito, porque afinal: amo-te e odeio-te ao mesmo tempo. A nossa ligação umbilical não me deixa soltar de ti, somos mais do mesmo e menos do mais. Estamos tão próximos que por vezes nos confundem, nos confundimos. Não sei quem morrerá primeiro, mas quem ficar – certamente encarnará a parte do outro que se perderá na poeira, fazendo com que tudo fique na mesma: é assim que funciona o equilíbrio (menosprezado) da natureza. Vivemos a valorizar em demasia a existência física das coisas e pouco aquilo que se sente. Usamos e abusamos de sensações fortes descartáveis – o nosso ópio. O que habita na nossa alma e coração é eterno e não desaparece por vontade consciente. Quem ficar por cá, por castigo do criador, por sorte, por merecer ainda penar mais: será um só, habitado pelos dois. É demasiado forte o que nos une para se esvair como os grãos de areia dos dedos de uma criança que brinca só na areia de uma praia deserta. Vivemos coisas (em demasia) juntos ou alternadamente: sim! Quantas vezes perdi amantes porque tu apareceste no meu lugar; quantas vezes me facilitaste a vida quando afastaste uma paixão perdida em que tu (só) deste a pancada final. Não sei se te deva agradecer, se te deva odiar por isso, por tudo isso.

III
Alguns amigos (muito poucos), aqueles que eu deixo que me conheçam profundamente, dizem que num dia sou doce e que no outro sou amargo; que por vezes tenho um ar perdido e contemplativo e que no momento seguinte fico com ar fechado mas também perdido. Sou eu, meu amor, que te abraço de forma forte e é o outro que escorrega dos teus abraços e foge. É o outro que tem medo que o teu abraço seja partilhado e sou eu que quando estou longe do teu abraço – sonho com o momento.
Quem está perto de mim – acha que estou bem quando apareço, que estou triste quando o outro aparece. Nem todos conseguem perceber esta aparente bipolaridade. O ser e não ser, o querer e não querer, o que dá e o que não tem força para o fazer; o que aparece sempre a horas e o que de propósito se esconde, o satisfeito e o eterno insatisfeito. Aquele que lê as pessoas pelo abraço e o que foge do contacto físico. Crescemos com os mesmos genes mas vivemos sempre caminhos tresmalhados que se cruzam e descruzam. Além das feições e do nosso laço de irmãos- pouco ou nada nos une. Já me tentaste aproximar de mulheres que conheceste, eu não quis. Quem acaba por aparecer e se intrometer com quem me apaixono – és tu, somente tu. Quero acreditar que não o fazes por mal, está na tua natureza. Já te disse que te compreendia e te amava, tu nunca o fizeste. Como eu te entendo: passaste os teus anos no desalento e na amargura. Parece que foi essa a parte que te calhou no destino. Se calhar seria pior pessoa, se tu não existisses, se tu não te intrometesses na minha vida.

IV
O tempo passa e lá segues o teu caminho, sempre a reboque do meu. Continuo sem te por os olhos em cima. Hoje de manhã fazia a barba enquanto olhava para o espelho e procurava-te. Será que também fizeste a barba de manhã? Deves ter feito, só assim se manterá a ilusão de te confundires comigo. Hoje vou fazer tudo ao contrário do que combinamos no bilhete que te deixei. Vou a onde não disse, vou estar com quem não imaginas: Ah! Tentei enganar-te: não te revelei que estou apaixonado, não quero mais que apareças em meu lugar e que digas o que não sinto, que não sejas meigo e que deites tudo a perder. Um dia terei que te dizer: adeus! Sei que não será hoje, mas irá acontecer. Sei que nesse dia me continuarás a contemplar, só espero que libertes a tua amargura e desalento e consigas tal como eu – dizer tudo a um amigo ou a uma amante o quanto sentes – com um simples abraço. Estás ai irmão?

quarta-feira, julho 22

Noite de verão

Espreito pelas frinchas da janela. O som único das ondas ecoa como uma melodia. Ao fundo a Lua observa-me (discretamente). A brisa deliciosa de uma noite de verão aquece-me. Não resisto – abro a janela. No silêncio da noite, debruço-me para o mundo. Avisto bem perto o quebrar das ondas; num movimento delicado: as ondas tocam vezes sem conta em milhentos grãos de areia.
Estou só: solto e selvagem. A brisa embala os meus pensamentos; o luar ilumina a minha penumbra.
Não me sinto só, nunca me sentirei- foi a promessa que fiz enquanto criança de colo. Espreito ao fundo, pareço avistar uma silhueta que se mistura em mil formas com o abanar das árvores -não a reconheço: não, (ainda) não és tu meu amor, infelizmente. Desvio o olhar e mimo-te enquanto penso em ti.