domingo, agosto 16

Livro perdido

Encontrei-te numa noite que se desfez em luz da madrugada. Mas recuando até ao início: pé ante pé caminhava, sem rumo, por uma viela com nome de rua. Um cinza escuro era apenas rasgado pela parca luz que irradiava de alguns candeeiros. Como cansa fugir quando vivemos noite e dia com o mesmo ensejo. Perdia-me a olhar para trás para tentar perceber se teria ou não despistado a minha própria sombra.
Uma velha porta despertou a minha curiosidade. Composta por uma bela arcada parecia o portal para o desconhecido – que tanto procurava. Com pouco esforço, forcei a porta. O medo pelo desconhecido era a minha gasolina. Quando se está mal arriscámos tão pouco quando escolhemos o desconhecido. Não é? Sentimos uma sensação de medo que nos estimula e pouco retrai. Já não acreditamos que o desconhecido nos traga a solução e já não tememos o pior. O pior já está, há muito tempo, impresso nas linhas tristes e amargas dos nossos diários (que escondemos durante a luz do dia).
Dou por mim num estreito corredor que me leva, ao que parece ser, a uma solitária biblioteca. Fecho os olhos e imagino os livros com vida. Contando as suas histórias uns aos outros: histórias que nunca são as mesmas. O narrador, o tom, o momento ou o excerto tudo muda. Cada um com uma função extra: amparar o seu vizinho ao longo do tempo. Já ninguém lhes toca, resta-lhes servir de depósito de mil poeiras que empestam o ar e amarelam o seu papel.
Acendo um cigarro e dirijo-me para uma das prateleiras. Deixo que a minha mão seja conduzida pela intuição. Escolho um belo livro de capa encarnada e com o título manuscrito por uma caneta de aparo. A cola que agregou as folhas ao longo do tempo parece ceder com o tempo e com a humidade. Com todo o cuidado abro-o. Sento-me e bem devagar abro-o. A mesma caneta de aparo que serviu para a capa é usada no seu interior. Entendo que se trata de um diário de alguém. A caligrafia parece acompanhar como uma nota musical – os momentos narrados: amores e desamores ficaram impressos em várias páginas, que agora resistem a ser abertas.
Foi assim que te conheci, só te amei depois de ler o teu diário, por acaso ou por destino. Precisei de te ler para te poder compreender. Enquanto escrevo estas palavras: abraço-me ao teu livro.