sexta-feira, julho 15

Quadro Branco

Acendo um último cigarro. Escolho a última música: tem que ser aquela. Suavemente deixo a agulha aterrar no labirinto do vinil. A voz ecoa ainda mais rouca e arrastada do que o normal. Altero as rotações. A voz deixa de penar. Sento-me no sofá. Deixo-me escorregar e fico deitado. Já posso escorrer pensamentos enquanto projecto o olhar para o meu tecto branco. Volto por momentos à sala de aula e tenho à minha frente um enorme quadro. Embora deitado – sinto que é todo meu. Estou livre – ninguém me observa. Não preciso de giz – deixarei a marca com o meu olhar. Agora nenhum pecado mais será partilhado. Não preciso de corrigir ou apagar os trilhos que deixo. São só meus, foram feitos para mim.
Percorro cada irregularidade, curvo o olhar nas arestas e sinto as irregularidades. Por vezes opto por um zig zag aleatório ao som do devaneio. Ao contrário de um cego sinto o tacto perdido com o meu olhar.
O fumo do meu cigarro baila enquanto sobe. Fica tarde, o vinil ecoa os estridentes riscos de quem se aproxima do fim. Já perdi uma tarde inteira, quando miúdo, a observar a ressaca da agulha: como um afogado que nada sem parar – atinge a margem, escorrega e repete tudo de novo. Ou como alguém que se aproxima e afasta de uma porta até ganhar coragem para dizer que ama a sua amiga que foi colorida - quando o seu mundo era a preto e branco. No sentido oposto: um arco iris nasce quando o sol irrompe com a chuva. Curiosamente, a amiga colorida perdeu a cor e ganhou o brilho de quem é amada. Se lhe retribuir o amor – será a sua doce amante, senão não passará da amiga descolorida. A amiga colorida desvanece-se como acontece com a nossa camisola (favorita) de cor quando sai da máquina que lava o que não é preciso:
- Lava máquina, peço-te: branqueia a minha alma, promete que pelo menos desbotarás (um pouco) o cinza de alguns pensamentos.
Aperto a camisa, derramo perfume sobre o meu peito seco e bato a porta.