quarta-feira, novembro 4

F123

Podia chamar-te Ana ou Carla mas prefiro tratar-te por F123 nesta estória.
O destino tem destas coisas. Num momento de ócio, enquanto o fumo se escapava da minha boca, encontrei-te. Já não me recordo se cheguei a matar totalmente o cigarro que me mata aos bocados. Ao menos a embalagem não me mente: fumar mata. Não é como certas mulheres que repetem tantas vezes palavras de paixão como quem saúda o outro com um: bom dia. Também há tipos iguais, dizem.
Sempre testei quem se cruzou comigo. Se forçavam o meu deleite com elogios e promessas de amor depois duma primeira noite – pouco valiam. A ti – F123 não o fiz. Não me apeteceu. Não foi necessário.
Mas voltando à tua estória:
O inverno ainda reinava mas nesse dia a chuva tinha feito tréguas. O sol era o suficiente para iluminar o dia. Pessoas entravam e saiam. Eu, envolto nos meus pensamentos não te avistei à primeira. Acendi outro cigarro, já me esqueci quantos foram. Pessoas passavam. Pessoas que cruzavam o olhar com o meu. Formando um contraste curioso com as pessoas que arrastavam o olhar pelo chão.
De repente cruzas pela minha vista. Eras alta. Mais alta que eu – mas não muito alta. Não precisei de muito tempo para ter o teu telemóvel. De cima dos teus ombros, sentia-me como num parapeito.
Precisava de mudar, de respirar – foste a minha âncora, mas também o meu cilício.
Num piscar de olhos estava a morar contigo. As nossas noites eram agradáveis: em silêncio uma TV vomitava cores e luzes que enfeitam o ecrã. Com a luz apagada era ainda mais fantástico. Nem uma palavra; nem um sorriso, nem um carinho. Era como seu te ocupasse e tu o deixasses. O sofá que era teu – acariciava-me mais do que tu. Nunca me pediste nada. Nunca me fizeste juras de amor. Nunca me deste um único abraço. O nosso silêncio cúmplice era o meu doce mas também o meu amargo.
De manhã quando batia a porta, nem para traz olhava. Sempre que regressava a casa estavas lá. Nunca percebi se saias. Não quis saber se passavas os teus dias a ler os meus livros ou a mexer nas minhas coisas. Quem sabe a procurar saber se eu tinha outra. No fundo e apesar do teu silêncio: consolava-me pensar que pelo menos nutrias carinho e respeito por mim. Não sei. Todos nós acreditámos naquilo que queremos. E há um deus que protege aqueles que acreditam e os que não acreditam: todos são filhos. Por isso de nada me importava se tu acreditavas em mim ou não. Nada importa. Podia entrar tolhido por mil amantes que nada dizias.
Esta dor de estar só enquanto acompanhado magoou-me. Fez-me sentir um fogo que queimava enquanto tremia de frio. O meu monólogo esgotou-se. Nada tinha mais a dizer. Sei que tiveste tempo para ler todos os meus livros. Tiveste tempo para me conhecer. Vou-me. Brevemente irá aparecer alguém como eu – que procura o silêncio (por opção).

Adeus. Deixo-te com um beijo que nunca te cheguei a dar.