terça-feira, setembro 19

Melodia

Foi num dia de nevoeiro que te conheci. Descias uma rua na baixa. Mal se conseguia perceber como eras, mas mesmo ao longe fizeste me sentir algo que não entendi. Dei por mim a seguir-te, sempre a uma distancia segura com receio que o percebesses. Levei a sério esta minha compulsão durante meses a fio. Ao longo do tempo comecei a perceber o quanto pontual eras, mas mais importante que tudo: eras uma mulher muito bela, apesar do teu ar triste. Era claro que transportavas alguma dor que eu não entendia. Caminhavas com os teus olhar rasante ao chão como quem transporta um peso maior que o peso de uma alma que pena.
Foi num dia cinzento de dezembro que, como sempre o fazias religiosamente todos os dias, entraste no café, o nosso café. Sentava-me sempre perto da porta para ter a certeza que poderia acalentar a esperança de ser o primeiro para quem olharias. Nunca o tinha conseguido e de tudo já tinha tentado. Nesse dia o café estava anormalmente cheio: homens mais velhos acotovelavam-se junto ao balcão e as mesas estavam cheias de pessoas ensonadas que pareciam adormecer no meio do cimbalino. Acenei, como quem cumprimenta um velho amigo, estava disposto a ceder-te o meu lugar. Agradeceste com uma voz rouca que me era desconhecida e ficaste em silencio.
Os dias passaram e durante semanas te sentaste a meu lado no café. Mal olhavas e nunca falavas. Parecia sentir uma sensação de alivio em ti só pelo facto de teres sempre um lugar aconchegado à tua espera. Temia que fosse um hábito. E como eu tenho pavor de hábitos que transformam coisas maravilhosas em meras rotinas frias, secas e tolhidas.
No mês passado dou por mim sentado na sala do teu apartamento. Um belo apartamento na rua de Sá da Bandeira e que tinha uma vista maravilhosa. A sala estava decorada como se tivesse parado no tempo – como tu estavas. Imaginei uma família burguesa que desapareceu misteriosamente para uma qualquer parte incerta e que ficaste tu sozinha: filha de um homem austero qualquer, neta de uma senhora velha, mas querida que perdia horas a lutar contra os olhos cansados que lhe trocavam os pontos do tricot. Uma sineta empoeirada na mesa deveria tocar constantemente para chamar os empregados. Nas paredes estavam colocados vários suportes de fotografias desgastadas pelo tempo. Agora, em vez de pessoas, exibiam manchas a preto e branco - desbotadas de humanos que até na foto já tinham morrido. Ao fundo conseguia ouvir a voz da Maria Callas. O delicioso riscar de um vinilo parecia ser a fonte melódica que perfumava o ambiente. Misturada com a voz maravilhosa sentia ouvir um choro, sempre presumi que fosse o teu. Dia após dia, este cenário foi-se perpetuando. Por volta das 8h da manhã tocava, esperava pelo levantar do auscultador e dizia: - Sou eu. Abrias-me a porta, subia no elevador até ao sexto piso e encontrava a porta de tua casa aberta. Perdoa-me, faltou-me sempre a coragem para sair a correr da sala e consolar o teu choro; abafar-te num abraço e dar-te colo enquanto ouvias o teu disco dorido.
Na semana passada fui de novo ter contigo, mas não me abriste a porta. Corri para o café, procurei-te no caminho que eu conhecia de cor: mas não te vi. Desesperadamente, perguntei por ti ao empregado do café, do nosso café e este em silencio entregou-me um pedaço de papel, meio amarrotado e com uma letra tão bela como o teu olhar que dizia:

Un bel dì, vedremo
levarsi un fil di fumo
sull'estremo confin del mare.
E poi la nave appare.
Poi la nave bianca
entra nel porto,
romba il suo saluto.

Vedi? È venuto!
Io non gli scendo incontro. Io no.
Mi metto là sul ciglio del colle e aspetto,
e aspetto gran tempo
e non mi pesa,
la lunga attesa.

Foste o único que amei em silencio,
Perdoa-me se nada te disse.
Perdoa-me se te fiz sofrer.
Perdoa-me se a dor me tolheu a voz, o olhar, a vida.
Perdoa-me se te usei para compor a melodia da minha tristeza.