segunda-feira, outubro 23

Sacrum scripta

Ao escrever forço o aparecimento de letras pretas num fundo branco que não passam de pedaços de mim dissolvidos num papel que sobrou ao fogo do fim deste Verão. Escrever é uma droga pestilenta que nos agarra logo no primeiro ensaio. Livres apenas ficam aqueles que escrevem sem alma, vendendo letras, frase ou parágrafos sobre uma vida falsa e inócua. A privação (da escrita) é uma dor forte que rasga as entranhas de uma forma que não sobra pinga de sangue para cair. É uma dependência que finge desaparecer para de seguida voltar ainda com mais força, veja-se, sinta-se: a pressão no peito, o sentimento de insatisfação por escrever algo que nem sequer sabemos bem o que será; o deixar fluir a mão desenfreadamente da esquerda para a direita como senão houvesse um amanhã; apenas conseguir respirar normalmente quando largamos tinta no último ponto final e a amargura doce e estranha que nos faz reler o nado-vivo sem pretensão alguma; não passa de um órfão distante, mas que entope o nosso consciente duma forma violenta, decidida e única. Que no final nos transporta imediatamente para a sombra que engole qualquer laivo de luz celestial, no faz parar e pensar no que não pensámos e temos medo ou dor em pensar.
Nunca se consegue reunir a mão e um pensamento duas vezes na vida na mesma forma escrita.
Tal como nunca se consegue amar diferentes pessoas da mesma forma. Agarra-me a tua mão com força, abraça-me e apaga a luz. Deixa que o silencio abafe a dor de ter de escrever. Abraça-me com força e apaga a luz que me encandeia.