terça-feira, novembro 29

Momentos de fancaria

Sinto um frio que estremece a espinha. O tom pastel das arvores que se preparam para morrer e renascer - despertam a paisagem. Pássaros loucos voam tresmalhados como no Hitchcock: uns partem outros ficam. Voam em conjunto. Deixam-se planar. Como é bom planar na vida. Deixar que o vento nos leve. Sentir a velocidade. Nada temer. Viajar sem destino. Esquecer de fixar o rumo. Perder a bussola, enquanto nos deixámos levar. Não precisar de decidir. Não precisar de pensar. Pensar - dói. Seguir o instinto é respeitar uma das regras fundamentais da natureza. Felizes emparelhados – os pássaros – nunca se sentem sós. Solitários são os humanos mesmo quando se fundem em grupo. Perco tempo a ver as pessoas a passarem na rua. Encontrão aqui, encontrão acolá. Olhar colado na calçada. Telemóvel no ouvido. Não deixam de estar sós.
Ainda sinto frio. O céu limpou-se. Transparece um lindo azul que contrasta com os tons de Outono. O rio corre e com ele arrasta o pensamento. Ondas de fancaria batem na margem. Um miúdo loiro empurra a água com a mão: brinca. A corrente empurra a margem. Sente-se uma ferida de tanta erosão. “Água mole em pedra dura”. Será que água é mesmo mole e que a pedra é tão dura. Um barco rasga a corrente. Arrasta-se e arrasta a água à sua volta. Cria a sua própria onda, que num chapo, choca com a margem e molha a criança que brinca. As gaivotas preguiçosas ficam. Apaixonaram-se pela cidade. Alimentam-se do lixo que os humanos cospem. Reclamam o seu espaço. Deixam-se ir a boiar na corrente. Escondem-se o meio do grupo. Na margem espreito para o rio. Deixo que a corrente me leve o coração. Molho os pés. Aprecio a companhia da brisa que me abana. Espero que alguém passe. Que seja quem eu não conheça. E que me cumprimente com uma troca de olhar. Que seja carinhosa. Que os olhos brilhem como os de um miúdo que ronrona com um mimo.