sexta-feira, novembro 4

Voos

Eu mal vi que tu me viste para ti olhei.
Ainda me recordo bem: foi num sitio onde as pessoas chegam e saem apressadas. Chegam sós e saem acompanhadas ou ao contrário e apenas as senhoras transportam malas.
Estavas bonita e procuravas com afinco pelo teu isqueiro. O teu olhar cruzou com o meu. Não pensei num flirt, procurei o meu isqueiro e aqueci o teu cigarro, iluminei a tua cara. Começaste a falar da tua vida. Lembra-me que música foi logo um dos assuntos. Disseste-me que eras bibliotecária e que temias ser despedida porque perdias o teu tempo a ler livros. Que te esquecias muitas vezes dos relatórios e do controlo dos livros emprestados. Que o único dia em que interrompias o ritual do mergulho nas letras era quando tinhas que formalizar uma encomenda de novos livros (que ansiosamente querias devorar logo de seguida). Falaste sem parar, até as pausas do teu discurso engolias. Temi que me achasses uma pessoa desinteressante que não tinha interesses na vida, pois nem tempo de os dizer: tive. Lá te consegui arrancar um segundo de silencio e dizer-te que escrevia e fotografava o Porto. Que esta era a cidade que apesar de não me ter visto nascer era aquela que tinha conquistado o meu coração. Expliquei que escrevia e fotografava por amor às coisas, por querer eternizar sentimentos, emoções e locais especiais; que fugia da cor e me refugiava no preto e branco – para ir até a alma das coisas; que raramente recebia uma retribuição ou reconhecimento pelo trabalho – chegava-me o prazer de o fazer; que vivia só mas acompanhado por duas amantes: a minha imaginação e a solidão. Temi que te assustasses e fugisses de um pobre louco que era o que eu me sentia nesse momento.
A conversa continuou e continua: ainda não paras de falar de um assunto; ainda engoles as minhas palavras, por vezes, com a sofreguidão das tuas. Mas confesso que assim prefiro, pois, a tua voz é mais bela, parece transparecer a luz da tua alma. Ainda me encantas com o teu olhar. Ainda dizemos um ao outro: desejo-te, isto sem ter de esboçar uma única palavra. Ainda trocámos abraços como se fossemos crianças mimadas. Percebi que a minha solidão anterior era uma amante que só mal me fazia. Deixei-a. Abandonei –a na Rua das Flores numa esplanada junto a S. Bento, reneguei-a, virei costas e corri para ti.
Amor, cuidado não percas o voo. Ah! Se o perderes rapto-te e levo-te num voo só comigo. Lembraste da route 66? Será para lá que vamos se assim quiseres. Tenho tudo o que preciso: a ti, a minha máquina fotográfica, papel e uma caneta. Como se sinto rico – neste momento.

segunda-feira, outubro 31

Luzes desgarradas

As luzes deixam o seu rasto na noite: num bailado descoordenado cada chama alimenta uma história. O tempo passa numa dimensão atrofiada. Enquanto o sentimento jaz no fundo do coração. Olho para um sorriso de uma criança e rezo para que este me arranque do coração – alguma parte que dói; que me ampute da alma - a saudade, que me solte das cordas ou que impiedosamente as puxe. Que se solte um silvo estridente e tudo passe a cinzas. Que o céu deixe de ser azul e o mar se esqueça de ondular.
- Se eu pudesse tinha feito e dito que…! De que vale eu saber escrever o que viaja pelas entranhas do meu cérebro, se pouca força tenho para soltar na forma de uma melodia que mal atraca e não se solta pelas cordas vocais. De que vale ter voz – se esta nos trai e diz que disse, quando só ecos de silencio se espalham pelas moléculas do ar que carinhosamente te tocam: te tocavam, te tinham tocado – já que nem cá estás para ouvir.
Se eu pudesse tinha ido ter contigo mais vezes. Ter soletrado ao teu ouvido: amo-te.
Deveria ter atirado todos os meus escudos para o ar, sorrir e trocar por abraços: tinha ficado tão mais rico, sabes?
Esticado o tempo, corrido contra o vento e a tempestade para te vislumbrar: em silencio, sabes é quando mais falo, é quando mais te digo na forma de um sopro delicado: amo-te.