quarta-feira, abril 13

A nave especial

O granizo áspero, frio e duro bate na janela. Rapidamente consegue o seu objectivo: Pedro acorda. A primeira perna é sempre a mais difícil de levantar: um pequeno grande esforço. Roupa perdida pelo chão serve de protecção para o frio que se deverá sentir lá fora. Umas botas enlameadas e um cachecol que já foi branco servem como última protecção. Já é tarde: o sol já se perdeu a nascer e agora esconde-se timidamente por de trás de uma nuvem cinza.
A porta da rua bate enquanto o granizo continua a sua caminhada em direcção ao chão. O ruído é ensurdecedor. As pessoas abrigam-se nos cantos e vielas da rua. Esperam a boa nova: que o relógio acalme e o granizo pare.
Menos de mil passos e o Pedro chega. Uma porta alta abre-se como que por magia. Agora têm um formato translúcido em vez do opaco que se via nos filmes de ficção científica. Um a dois passos e entra dentro da nave espacial.
Agora tudo parece mágico: até as escadas empurram pessoas numa direcção: sem dor,sem cansaço e sem escolha. As luzes intensas competem por atenção. Uma música pirosa berra.
Vários corredores infinitos espalham-se em ruas sem fim. Várias pessoas caminham como se fossem máquinas controladas. Que melhor sitio que este para nos sentirmos sós quando acompanhados?
A caminhada do Pedro leva-o a atravessar várias dimensões inimagináveis: aromas e essências que nos fazem sentir irresistíveis; soluções para quem quer ver em demasia; tapa peles que as mulheres deixam encostar ao seu corpo nu e as faz sentir mais atraentes; promessas de cabelos coloridos que se desmontam à mínima corrente de ar; brinquedos aos fartotes que conseguem fazer com que os pequenos sintam a mesma insatisfação e frustração que os adultos sentem quando crescem e descobrem que não podem ter o mundo; finalmente: aparatos eletrónicos que espalham cínicos abraços e mimos digitais enviados por desconhecidos que nos desprezam ou por conhecidos que não têm tempo para nós - isto em troca de uma mensalidade que pode ser paga nas caixas mágicas, mas temperamentais, que nos dão ou tiram os trocos.
O Pedro vai, agora, procurar um livro. Quer sentar-se ao lado dele e deixar o tempo passar; quer sentir o papel impresso que os seus olhos devoram e que este o acompanhe nas próximas horas (até ao fim).
Sente a estória em cada página. Vive a estória com o coração. Para de ler por momentos: para e sente cada personagem a passear-se na sua cabeça. Lembra-se da Teresa: aquela que viveu com ele de papel passado, aquela a quem ele mais vezes repetiu: amo-te. Mas, que se foi com o tempo. Tal como uma criança que vai largando a mão do pai – enquanto cresce. As mãos do Pedro e da Teresa perderam-se num belo pôr-do-sol e nunca mais se encontraram.
Move-se na cadeira: as dores não o largam. Já não são dores de crescimento, talvez sejam dores de desvanecimento. De quem espera viver os últimos momentos envolto numa trama de amor de um bom livro. Quem sabe a personagem terá a coragem de puxar um cordel, de o empurrar numa ravina e terminar o tempo que não acaba.
Sente uma respiração. Ao lado dele alguém sorri. Duma forma frenética avança páginas. Para: sorri. Encosta o livro ao peito por momentos e fica pensativa. Olhares são trocados de forma acidental. Partilha de sorrisos inocentes – acontece.
Já se sente menos só.
Mas já é tarde, vai-se.