quarta-feira, fevereiro 3

Igreja despida

Subo a rua numa velocidade adequada a uma manhã submersa na bruma. Os faróis cortam o escondido. As pessoas encorrilhadas abraçam com força as golas do casaco- escondendo o corpo do frio e procurando embaciar a dor do afeto (que falta). Acotovelam-se na passadeira; corpos que roçam; olhares que tocam sem sentir o tacto. Cruzam comigo por momentos. Caminham a pensar na vida: madrasta. Nem sempre se escolhe. Tal como o respirar – acontece. Mesmo quando não se quer. Mesmo nos dias em que não apetece (mais):acontece. Vivemos mesmo sem vontade e por vezes sem rumo. Vivemos até uma doença qualquer nos tolher. Vivemos até não desistir. Vivemos por um amor e porque precisámos de abraçar um filho. Só isso. Nada mais interessa. Quando um dia, se tiver tempo, me sentar com um xaile envolto em cabelos brancos será nisso que pensarei. Passarei os meus dias a revisitar o amor e carinho que consegui, não terei tempo para pensar em tudo o que perdi. Se perdi porque não mereci, se larguei porque não queria ou se deixei ir por preguiça. Não, não terei tempo. Ficarei parado nas coisas boas, essas ajudaram a aquecer o meu débil corpo.
Uma bicicleta quase me toca, acordo dos pensamentos: meto a terceira já a pensar na sexta, o carro acelera. Enquanto isso, a igreja do Bonfim -imponente - aparece suavemente ao fundo. Abraçada pelo nevoeiro, mostra-se timidamente. Imóvel e meio escondida. Ressuscita (apenas) para quem a quer ver. As pessoas atravessam uma nova passadeira. Repete-se o ritual: caminhares apressados de silhuetas abraçadas às golas do casaco. Caminham a correr mas sem olhar. Ignoram a imagem e o momento. O sol força e começa a rasgar, não faltará muito para a igreja ficar despida e igual a si. A mesma imagem que estava ontem e no dia anterior. Mas que continuará bela, apesar de lhe faltar o abraço da bruma.
Rezo por um semáforo vermelho que não acontece. Queria poder contemplar (tudo) mais uns breves minutos. Queria ter tempo de ficar com a imagem mais nítida na minha cabeça. Buzinam. Retomo o movimento, retomo os meus pensamentos enublados, retomo o meu caminho na bruma.