quarta-feira, outubro 26

Vida de gato

Os pneus rasgam o alcatrão: um chiar intimidante e constante estilhaça o silencio da noite, o rugir das minhas palavras taciturnas. No meu lado direito sinto a bravura do mar e as suas ondas fortes que tudo abalam, roem e moem as rochas solitárias que ornamentam a costa. Em contraste com o canhoto onde uma risca branca e intermitente me castra a tentação de pisar o risco: acelerar em contramão até a exaustão e fugir da morte com um guinar brusco do volante. O escuro da estrada atira-me para o desafio do desconhecido. Mas o escuro pouco diz; desperta a curiosidade; acelera o medo; leva à dependência – agarra um qualquer desprevenido. É preciso conhecer, deixar a alma vaguear por essas bandas e por algum tempo para entender o que é viver. Não ama quem não sentiu desamor. Não é feliz quem nunca provou a tristeza. Não se aprecia a companhia quando se foge da solidão. Sente-se o escuro cada vez que morremos: um amigo que se esfuma; um amor que se estilhaça; um momento feliz de mentira ou quando perdemos de vista quem gostamos, quem amámos.
Os gatos são mais felizes – só têm sete vidas.
Os sentimentos rasgam o coração: uma dor profunda ou um ronronar que reduz a importância do todo. Por um lado, a coincidência de um encontro: pessoas estranhas que se entranham, sem no inicio perceber o porquê. Um carinho que se troca – sem ser vendido. Uma mão que puxa a outra. Um abraço forte que aperta o coração. Um coro de corpos que se liga na mesma melodia, na mesma sintonia. Uma nova vida que nasce e amacia as pedras que habitam no coração e alma do paciente. Uma torrente que ao contrário das ondas bate, bate com mais veemência e de forma constante, sem, no entanto, impedir que os corpos se entrelacem e adormeçam amparados. Não se ama quem se quer. Não se consegue escolher um amante como não se escolhe quem é bom amigo. Só o amor tem a força suficiente para estraçalhar o vicio da solidão.
Os gatos são menos felizes – não escrevem sobre amor.