domingo, dezembro 18

Fancaria

I.
Momentos resgatados saltam-me à memória. E o mar ainda bate na rocha. Ainda sorrio com um olhar de uma criança. Continuo a esperar por um abraço. Minto quando não deixo que invadam a minha solidão. Resisto à tentação do calendário e não acabo com o ano. Espumo quando ouço: “Para o ano vai ser melhor”. “Paro o ano é que vai ser”. Viajo sempre à velocidade da luz – sou um privilegiado (?): o tempo tenta, mas não consegue ser um ditador. Apenas me observa, apenas me ajuda a construir uma memória. Lembra-me, sim, da agonia de não ser o que queria, de ser pior do que sonhei vir a ser um dia. De cada ruga que carrego e que serve de caminho para uma lágrima perdida, que sempre se escapa – no meio duma música. Habitualmente: danço; viajo; corro e perdoou-me, só.

II.
Sinto frio, este mundo congela-me. Sinto que muitos tapam os ouvidos e choram sós. Esperam que o artilheiro sucumba. Também – ele- um solitário -escondido numa consciência vendida pela raiva. Pedem a um Deus que se encrave o gatilho que espalha o sangue por Alepo. Que importa se é preto ou branco, esse Deus. Que ele do alto solte a ordem para que os anjos abracem quem sofre. Que, pelo menos arranquem num voo rasante – as crianças das bombas que raivosamente queimam a vida.

III.
Escorrego e tropeço: como uma bomba rebento um saco de plasma que se perdeu no labirinto. Corro cautelosamente, não quero tropeçar num sem-abrigo. Vendo a alma para pagar a ceia a quem não a tem. Abraço um refugiado. Ajoelho-me junto a um terrorista: peço clemencia. Deixo-me ir, a correr egoistamente – empurro um desempregado. Ajudo à atravessar a rua, é uma criança perdida no mundo; é um pobre com fome; é uma alma que pena pela cidade. Tudo isto numa cidade que adormece, que se deixa enrolar na escuridão. Que se deixa iludir pela paz de fancaria.