quinta-feira, dezembro 22

A Cinderela e o monstro

I.
O pano cai no teatro da avenida. Avisto-te. Escondo-me por de trás da cortina. Assusto-me: as palmas não param. São minutos que passam devagar. Não são para mim. Eu apenas puxo e desço a velha cortina dia após dia. Dantes tinham uma velha máquina, mas esta praguejava mais do que eu e a sua velhice comprometia muitas vezes: fechava muito devagar e ao abrir soltava um ruído metálico ensurdecedor. Quase me sinto parte do teatro. Já sei os diálogos de cor.

II.
Todos os dias espero que entres em cena. Não resisto e devoro com o meu olhar os teus lábios carnudos e tenros. Por mais pessoas que já tenhas beijado, sinto-os meus – mas ao longe. Parece que mesmo assim o calor deles me toca e por vezes me turva a vista - como se embaciasse os meus óculos. Apenas desvio o meu olhar quando beijas o Viriato na cena final. Sonho ser ele, longe dos holofotes e sem precisar de descer – logo de seguida – o pano que divide a peça do mundo que a devora atentamente.

III.
Se pudesse sopraria ao teu ouvido: amo-te. Suplicaria para que embrulhasses os meus sentimos e conservasses esse presente – sempre junto ao teu coração. O mesmo que eu sinto à distancia quando te entregas ao papel da Margarida. Uma mulher que sofre de amor do primeiro ao último ato e que termina enganada: beijando o homem errado. Um homem que conserva ainda o calor e a saliva da mulher que beijou à porta de um bar. Embriagada, embriagado fingiram ter prazer no meio do nevoeiro de Londres.