quinta-feira, junho 14

Par(is)

Despedi-me de ti, sem te sentir.
É bem cedo. Um novembro seco, mas frio abraça Paris. Desço uma viela e chego aos Campos Elísios. Gente apressada que passa – sem tempo de trocar um olhar; vultos telecomandados que aceleram o passo e só travam na eminencia de choque; (algumas) mulheres bonitas que desfilam sem perder o rumo; automóveis que param e arrancam ao ritmo dos semáforos.
Chego: encontro o cruzamento de Rue de Berri com Rue D’Artois e sei que estou perto. Escolho uma esplanada bonita que vive – encrustada no cruzamento. Sento-me e peço um café. Mergulho o meu olhar por um jornal: canso-me depressa e admiro o céu cinzento. Um relógio na esquina toca: já são 8h. A minha mão esquerda deixa-se cair no bolso do meu casaco e procura algo teu. Os meus olhos estão agora presos numa carta, na última carta que me enviaste. Nunca trocámos uma mensagem no telemóvel, um email, um Skype. Sempre temeste que o teu marido descobrisse. E quando telefonas usas sempre um número fixo que eu – sofregamente – memorizo, mas sempre que alguma coisa tenha ficado por dizer, ligo de volta e do outro lado recebo um sinal de interrompido. Tudo em nós é interrompido, é vivido na forma de fragmentos que se encaixam (como peças de Lego) no espaço, no coração, mas nunca no tempo, brotam espaçados, sempre, a um ritmo imposto por ti. Eu, por mim, já me tinha perdido e já estaria a viver contigo num subúrbio qualquer, nem que a única luz que entrasse no misero recanto fosse o bonito reflexo dos teus olhos: nunca o quiseste, dizias: - és louco! Soltavas uma gargalhada e abafavas as minhas palavras com um doce e profundo beijo.
Deixo uma nota na mesa, garanto que não voa e saio do café. Alguns passos nervosos e estou junto ao teu Hotel. Volto a olhar para a tua carta e leio: 635; elevo o meu olhar para o piso 6 e procuro descobrir o teu quarto. Sinto que o encontrei: uma única janela mostra um cortinado solto que dança ao sabor do vento frio – que mata. Suponho que estejas a fumar cigarros sem conta enquanto bates com o teu pé direito no chão. Imagino o teu pedido matinal para o quarto: Goût de Diamants, o único champagne que bebes, o teu alimento diário que te dá energia e entorpece o que te atormenta. Perto de ti, deves ter pelo menos três livros, sempre te vi a misturar livros; a tua mão esquerda deve estar a brincar com a pulseira de diamantes que o teu marido te ofereceu no dia do vosso casamento; enquanto a tua mão direita te toca acariciando o teu lindo cabelo escuro.
Acendo um cigarro e perco-me com o movimento dos cortinados. Desligo-me: deixo a minha imaginação vaguear pelo que teria sido – se tudo tivesse sido diferente. Lembro-me de ter ajudado quando caíste na escada e recebeste em troca o olhar de desprezo do teu marido; soltaste um sorriso sofrido para mim e deste-me um livro como agradecimento. Nessa noite os nossos olhos – não mais deixaram de estar juntos. Mas. só no fim desse dia é que me apercebi que tinhas deixado um nome: Claire, um número de telefone fixo e uma hora no meio do livro. Hoje não estaria atui se não fosse por isso. Agradeço-te pelos instantes breves; por me teres deixado sentir o teu corpo, abraçar-te como se abraça quem vai partir; entregar-me à volúpia sem temer o momento da tua despedida; o viver intensamente com o relógio parado como se isso eternizasse os nossos curtos momentos (juntos).
Salto e dou dois passos atrás, foste tu, és tu que apareces no varandim a fumar. Não quero que assistas à minha indecisão: entro e abraço-a ou arranco forças das profundezas do meu ser para me ir – desta vez para sempre. Não sei se quero, se consigo. Sou fraco e a nossa paixão suga toda a minha energia (que ainda resta).
Fecho os olhos e caminho, ouço o insulto de pessoas com as quais – choquei, empurrei. Vou abrindo os olhos e procuro desesperadamente pela entrada do metro. Encontro. Desço. Salto furiosamente o torniquete do acesso. Entrego-me ao filme que passa na janela enquanto o metro acelera. Quase desmaio de dor; uma lágrima presa solta-se e acerta na minha mão. Uma senhora idosa olha para mim insistentemente: tenta telepatia, mas não consegue. O metro mergulha nas profundezas e o escuro desliga a minha visão. Uma luz intermitente ilumina mal a carruagem. Fecho os olhos e espero que me expulsem do metro, como eu te expulsei da minha vida, quando o fim da linha chegar.