segunda-feira, abril 30

Sol da meia noite

Um raio de luz difrata na pequena frincha que resistiu ao fecho da velha persiana. Abro os olhos e experiencio a decomposição da luz na parede clara. Não reconheço onde estou. À minha frente uma estante coberta de pó alberga uma foto a preto e branco de uma mulher bonita, que não conheço. Está pousada em cima de um livro cuja lombada está impressa em letras de ouro.
Ao fundo um gira-discos adormecido com a agulha pousada no meio de um LP do Caetano, como se tudo tivesse parado no meio - antes do fim; umas luvas de cetim pretas estão caídas no chão: alguém precisou de sentir o toque desesperadamente e deixou sem pensar para trás o que a impedia. Um copo de vinho vazio que não escondeu o traço de uns lábios finos que ficaram impressos no vidro num vermelho sedutor– entretanto sujo pelo pó que caiu não sei bem de onde.
Uma caneta de aparo e um papel amarrotado na mesa com uma caligrafia bonita e cuidada, provavelmente de uma mulher. Não resisti e espreitei, paro a respiração e leio em voz baixa:

Meu querido amor,
Estive na estação de comboios à tua espera. Dei por mim a olhar para cada comboio, para cada pessoa que saia, para cada pessoa que se escondia por de trás do vidro basso e procurei-te, desesperadamente. Não desisti, procurei-te sempre: sentia que as pessoas que passavam liam a ansia de quem sente o coração a arder por dentro de saudade, de amor.
Resisti ao frio, ao vento que abanava as minhas vestes, que me congelava o corpo, mas não consegui arrefecer a dor de não te ver. Passou muito tempo, mal sei como tens passado. Temo teres perdido o teu amor por mim. Releio na minha memória cada uma das cartas que me enviaste, ultimamente foram sendo mais espaçadas. Continuaste a jurar: amor, mas parecia que a distância te tinha deixado dormente o coração. Agarrei-me sempre à tua última frase: chegarei no dia em que nos conhecemos à nossa estação. Nunca um relógio de uma estação tão mal me fez: cada tic-tac agudizou a dor, empurrou mais uma lágrima que escorreu, já sem força, já sem alento.
O meu corpo não resistiu e só Deus sabe como, arrastei-me para casa como uma gélida sombra que se move à medida que o sol de deita – lá no horizonte. Na sala onde o nosso amor aconteceu vezes sem conta, onde pela última vez me despedi de ti, deixo-te esta carta. Quero acabar o copo de vinho, ouvir a música que dançaste – pela primeira vez – comigo e parar o tempo.
Deixo-te as últimas linhas do livro que me deste na noite em que os nossos corpos, pela primeira vez, sentiram o calor um do outro enquanto os nossos lábios se fundiram pela num toque sublime de paixão:

E a lua, para nós,
Os braços estendeu.
Uniu-nos num abraço,
Espiritual, profundo,
E levou-nos assim,
Com ela, até ao céu
Mas, ai, tu não voltaste
E eu regressei ao mundo.
T.P.

Deixo-te o abraço meu que é teu,
L.N.