segunda-feira, dezembro 3

Companhia (do) Xá.

I

Levanto-me e salto para cima da folha que ferveu na água que me aqueceu no meu primeiro chá do dia. Ainda, com a visão empoeirada procuro um reflexo de luz num dia em que a luz esmorece. Acordei triste e o meu corpo ainda acusa o peso dos medicamentos que tomei para morrer por umas horas, isto sempre sem a arrogância de pensar que o meu destino seria acordar. Lembro-me do ser humano que discute Deus porque se acha muito forte e não precisa dele ou porque acredita que vida lhe tem devolvido o bom na forma de um pontapé. Renega-o: mas depois persegue cegamente a imortalidade – essa sim, apenas digna dos Deuses.

II

A imortalidade é uma canseira. De que adianta, esta, se vamos perdendo todos de quem gostamos. Se com o avançar da idade menos apreciámos os espelhos (que apareceram na Anatólia e) que nos vertem reflexos invertidos das nossas rugas: espelho meu existe alguém mais velho do que eu? Até Narciso sucumbiu a um reflexo, o seu. O reflexo, o sentir, ambos matam (muitas vezes).

III

Sim, sinto com o coração: os reflexos que me atingem – e com eles. os raios que encandeiam. Por isso a porcelana é opaca e não deixa que o chá mime os raios de luz que ousadamente o atravessam. Mas temos (também) a escuridão que mente e esconde e a luz que atravessa o ar a que fomos condenados a aturar: quem nunca tenteou em criança revoltar-se e parar de respirar. Apostar com uma amiga com quem brincámos aos médicos: quem aguentará mais tempo? Mesmo sabendo que no fim todos perdemos (sempre) a infantil aposta. Essa amiga que no escuro perde o reflexo e fica reduzida a uma forma tridimensional que se sente com um toque ou que se bebe pelo calor dos seus lábios quando estes, à supina, se aproximam e nos tocam na forma de um mimo. Mas o que importa no fim, é que na ausência de luz, deixa, sempre, de ser uma amiga colorida.

IV

Remexo as ervas, retiro a folha chupada pela ânsia da água quente que a suga, que a usa enquanto pode. Respiro fundo e encosto os meus lábios à chávena quente. Atiro com força cristais de açúcar que – num abrir e fechar de olhos - se perdem. Aproximo-me de novo da chávena quente e doce: o chá espera por mim. Prolongo o prazer, como só os amantes o sabem fazer e bebo gota a gora – em pequenos goles. A minha mão ferve tanto com o calor exalado que até dói, até mói. Adormeço, de novo, na companhia do chá.