terça-feira, novembro 6

(Trans)Visão

Perdi-me onde me gosto de perder: na baixa do Porto, no meio de pensamentos.
A chuva e o vento frio derrubam o pouco que há para esgaçar das árvores (já) despidas pelo Outono. Algumas folhas espalhadas pelo chão derramam o tom pastel que caracteriza a época.
Passos corridos, caras encorrilhadas e (algumas) escondidas viajam na minha direção – sem qualquer receio, protegem-se do embate com guarda-chuvas pretos que mal têm tempo para deixar escorrer a água que cai, revoltosamente, de um céu que não se vê.
Entretanto, um poster que venceu o tempo e como tal - ostenta um apreciável grau de imortalidade - enfeita o vidro da montra que (já) não conhece dono. Prende-me o olhar. Paro. Contemplo um anuncio de um concerto da década de 80. Intrigo-me: como é possível ele estar ali. Como resistiu? Certamente, um pedaço da memória de alguém que viveu a época. mas cuja vida atribulada o obrigou a escapulir-se, deixando para trás esse tesouro. Mas a corrida (da vida) não para e quase me empurram. Sinto-me como um miúdo que brinca oferecendo o corpo às balas de uma arma de fancaria, que sabe que estas não o perfuraram, exceto no mundo do faz de conta. Mas, de novo, um bando de guarda-chuvas desvia-se no último centímetro, alguns chocam, mas resisto. O meu corpo parece beber um pouco da imortalidade ostentada pela montra e resisto como se não houvesse amanhã. Como se num exercício de egoísmo, o meu tempo congelasse pela ação mágica que invade o meu olhar. Eu, por momentos -poderoso, perco o amanhã, mas posso deliciosamente navegar entre o meu presente e o passado. Os outros vivem e envelhecem, na mesma.
Consigo assim tocar-te – como o fiz no primeiro dia que te conheci; posso sentir o abraço forte e terno que me ofereceste na Rua das Flores; facilmente viajo até cada dia 10 e revivo cada um dos sorrisos diferentes que trocámos. Como numa droga que nos amarra, fico perpetuamente a viajar para os meus melhores momentos do passado. Se calhar a morte é isso. Não sei.
Levo um abanão de um guarda-chuva revolto e o meu relógio parado avança o ponteiro com o solavanco sentido. Olho para o poster pela última vez e vou-me.