sexta-feira, maio 5

Olhar para o fumo

A noite cai de forma impiedosa, mas serena. Quando o nosso fumo se cruzou. Fumar não é a coisa terrível que dizem por aí: quantas pessoas interessantes já me contemplaram enquanto pediam lumes; quantos pensamentos deliciosos já viajaram pela minha (cansada) cabeça enquanto disfrutava o prazer de um cigarro.

E lá estavas tu a menos de um metro de mim - com um cigarro perto dos teus deliciosos lábios e um olhar de impaciência de quem procura um isqueiro na carteira. Um amigo meu dizia que as carteiras de mulher transportam o inimaginável e que nenhum homem deve tentar compreender e muito menos se atrever a mexer. São como um poço perdido no meio do deserto, transportam o ontem e o hoje: um bilhete do último cinema que assistiram na companhia de um qualquer namorado enterrado num jardim; um pincel que lhes alimenta o brilho dos olhos; um preservativo com bolor duma noite selvagem em que acabaram por ir para casa sozinhas ou uma carta de uma jura de amor que se foi com o vento enferrujado pela maresia e que recorda o seu último beijo numa qualquer rocha. Procurar em demasia resulta sempre em constrangimento.

Acendo-te um cigarro e ofereço-te uma cerveja. Que o álcool não te tolha – penso eu. Quando muito que te retire a mascara que usas para pareceres forte e me mostre o que vai muito além da carne. Já cruzei com mulheres belíssimas que me afugentaram as ereções da alma e do coração. Também conheci mulheres interessantes pela sua leveza e honestidade e em que tudo vem ao de cima no espaço temporal de um simples piscar de olho. Mas tu, falaste mais do que eu. É normal. Eu procuro sempre mostrar o meu encanto por alguém com o meu sorriso e o meu olhar. Parece que sempre que falo de mais, perco encanto. Mas não queria que o perdesses. Acenando e respondendo ao que falavas fui deixando que o tempo embalasse e embalsamasse o que de pouco posso ter de interessante. Parecias alegre. Foste a correr buscar outra cerveja e eu pensei que jamais teria a oportunidade de te tocar com o meu olhar. Sentia que ainda era cedo para te testar com o meu abraço. Sim, eu padeço dessa terrível maldição: leio para o bem e para o mal as pessoas pelo abraço. Não importa o sexo, não importa a idade. Um abraço ao contrário de um sorriso nunca mente. É a melhor métrica para aferir a empatia e ternura que qualquer pessoa – mesmo uma desconhecida – tem por nós. Os cumprimentos sociais no mundo deveriam ser –sempre- abraços. Já menti a beijar mulheres e já menti a fazer amor com algumas. Mas nenhuma delas poderá alguma vez afirmar que sentiu a forma doce e terna de um abraço meu que aparece sem eu controlar. Aparece quando um momento mágico chega e esse é só algumas vezes ao longo da nossa vida.

Roubei-te uma foto pois é a melhor maneira – para mim – de imortalizar um momento. Congela o essencial e não confunde o momento com o seguinte como acontece num filme. A expressão, o olhar, a cor dos teus olhos e a tua postura corporal ficam perpetuados num negativo que se pretendermos moldará um papel a guardar e cuidar para a posteridade. Como são maravilhoso s os químicos que ressuscitam uma imagem perdida num retrato esculpido pela nitidez de cada traço duma face. Sempre traços únicos: alimentados apenas pelo momento e pela companhia.

Deslindei uma forma de tocar na tua mão. Aceitaste, sem resistir. Mais tarde arrisquei o primeiro beijo num elevador e logo de seguida um abraço. Só aí te li, só aí tremi como uma virgem que descobre pela primeira vez: amor no seu coração escaldado e eternamente inexplorado.

Fecho os olhos, subo umas escadas e de repente respiro ao teu lado num apartamento esguio. Levemente tiro a tua roupa e embrulho-me em ti. Fecho os olhos e sinto um orgasmo que me arrepia a espinha e me entorpece a visão.

Na manhã seguinte salto para rua e penso no teu abraço, no ar misterioso do teu olhar. No que seria se não fumasse e se tu também não fumasses. Delicio-me a olhar para o fumo que sai da minha boca e viaja lentamente para cima, sem antes me tocar e me deliciar.