terça-feira, junho 18

Août

Foi em agosto, o que mês que eu adorava. O mês que me lembrava das brincadeiras do faz de conta com o meu avô; das longas férias na escola e em que agosto significava que ainda faltavam mais metade dos dias de brincadeira; das horas perdidas a olhar para o teto do quarto com os pensamentos em deambulações alienadas– tão típicas das dores de crescimento que se sente, pela primeira vez, na adolescência. Adorava, mas já não adoro. Como um amor que nos traiu em agosto e fica a dor. Não, bem pior: um acontecimento, terrível, uma lembrança má. Dizem que: com o tempo o amor perdido desvanece e cai com as folhas de outono, só temos de esperar. Mas: uma lembrança má fica e pica para todo o sempre -o pensamento, o coração de tempos a tempos, de lés a lés.
Descia Sá da Bandeira e tu saias de uma loja de miudezas chique. Num choque elétrico: os teus eletrões tocaram nos meus. Enquanto, o teu cheiro mima o meu nariz e chega ao meu cérebro na forma de uma pequena corrente elétrica – que sinto como terna. Os nossos olhos arregalam-se e rapidamente se soltaram sons, palavras que nos aproximaram mais.
Em poucos minutos, segurava a porta da Brasileira, para tu entrares. Escolhia uma mesa bem ao fundo – para te proteger dos olhares de outros, que eu, naquele momento, não queria. -Sou a Anne, disseste tu. Engoli em seco e respondi-te com o meu nome. Nenhum de nós era um tagarela. Falamos com os olhos – por longos minutos. Percebia-te, percebias-me pelo olhar – o que muitas vezes não acontece. Jantámos, abraços foram trocados – a olhar para o rio. Levei-te até porta do hotel. Já descia a rua quando ouvi a tua voz e corri para trás: para ti.
Durante semanas saímos juntos. Cada dia parecia um dia diferente. Nunca te perguntei o que fazias na vida, o que fazias pelo Porto. Tu também não. Não precisávamos. Lentamente fui conhecendo os teus gostos requintados, o que detestavas, o que te movia, o que te deprimia. As nossas mãos iam-se conhecendo, cada vez mais, tal era a força com que se apertavam – ao longo do dia. O teu sorriso contagiava o meu, o meu o teu. A tua voz rimava com a minha, mesmo num simples: bom dia, como estás? Conhecia cada curvatura que adornava o teu corpo, tu também – no meu. Esperava que os teus olhos fechassem para eu fechar os meus. Acordava cedo só para sentir depressa o teu olhar a acordar o meu.
Eras um fruto permitido por um cruzamento na baixa. Sabia das equações que os físicos usam para explicar o cruzamento de dois corpos indiferentes nas mesmas coordenadas espaciais e no mesmo instante, no mesmo momento. Pensava nos deuses que nos teriam empurrado- um contra o outro. Fugia sempre do acaso, que tão pouco nos dá, esclarece.
Um a noite em que bebeste demais. Percebi que estavas corroída pela mágoa. Que tinhas sido maltratada por alguém. Alguém que te tinha levado e te tinha largado. Como quando de repente do nada: algum vento irrompe pela janela aberta, abana furiosamente os cortinados, deita a abaixo o que encontra pelo caminho e depois desvanece. Tudo passa muito rápido. Quem chega no instante seguinte a casa – não o entende. Quem assistiu a tudo: fica em silencio num canto.
Fazias-me pensar quando falavas da forma como dissociavas o amor do sexo. O sexo era uma oportunidade para o corpo e o amor era um desafio para o coração, para a alma – dizias tu. O álcool era o elixir que usavas para essa libertação – percebia eu. Fiquei confuso. Mas não tive coragem de te perguntar: se me amavas, se gostavas, apenas, de fazer sexo comigo, se … tantos “e se?”.
Deixei-te, numa noite fria de outubro, na porta do aeroporto. Sai do carro, abri a tua porta. Soltei um sorriso. Pensei e não consegui verbalizar. Deixei-te ir, somente. Não trocámos de números de telefone, nem email. Não sabia a hora da tua partida. Não te perguntei qual o teu próximo destino. Se irias procurar alguém – à saída de uma loja. Se retornavas para o teu amor e eu tinha sido um mero alimento do teu corpo voraz. Se irias pensar: alguma vez mais em mim. Se tudo tinha sido um acidente. Acelerei para bem longe e sem me lembrar do trajeto de regresso, aterrei debaixo dos lençóis – que ainda tinham o teu cheiro. Na rua a luz de um semáforo intermitente assombrava o meu quarto.