sábado, junho 2

Amanhecer

O silêncio matinal belo, sublime e único é cortado por um toque estridente do meu despertador dourado. É o único objecto que ainda conservo desde o meu casamento, se calhar porque o odeio tanto, é sempre ele que me arranca violentamente da letargia do sono. Doí ao acordar, doí porque acordamos para vida e doí porque me lembra de tudo o que tenho que fazer em mais um dia cheio de coisas chatas e muito poucas coisas boas.
O acordar é como saltar do líquido amniótico, que nos faz sentir suspensos e livres no meio do éter – o nosso e só nosso éter. A hora chega e temos mesmo que deixar a letargia, o sonho e o aconchego do momento. Somos forçados a acordar para a realidade do dia - a realidade da vida.
Os primeiros passos, são um desafio, um tentar não esbarrar pelo que ficou pelo chão na noite anterior e que deixaram a sua marca dum momento qualquer, nem que tenha sido um descuidado acto de desmazelo. Não entendo porque é que o álcool é vendido em elaboradas embalagens de vidro. Não precisam de estar em garrafas bonitas, o impulso de as retirar duma prateleira do supermercado, resulta de outro tipo de sentimentos e desejo. E depois se no meio da nossa euforia nocturna nos deu vontade de as atirar bem para longe, como quem se vinga da droga que ama, que precisa, acabamos por a ver despedaçada em mil pedaços que ferem mais a nossa pele de que o álcool o faz ao nosso pobre fígado.
No seculo XXI é uma das anestesias para a vida que se podem (ainda) comprar livremente. O resto é ilegal ou então são químicos que nos forçam o ânimo falso e dissimulado, como o que temos que usar quando nos cruzamos com alguém antipático ou mal cheiroso e que por acidente lhe derrubamos as compras no chão. Detesto antidepressivos, têm embalagens feias e tiram-nos mais coisas do que o ânimo artificial que apregoam. Se calhar quando fantasiam do mundo um dia ser controlado por robots, falam duma legião de humanos que vagarosamente avança numa multidão, com um sorriso falso, apático e desligado. Podemos ser “precários” em tudo, mas não nos devemos dobrar dessa forma.
Está na hora de acender um cigarro e calmamente sentir o fumo entrar pelo nosso corpo, num profundo sopro de prazer e liberdade. Deixando o fumo se esgueirar pelos nossos lábios e formar um fantasma que anuncia o despertar para um novo dia.