segunda-feira, maio 28

Retrato de solidão interior

Numa rua suja, ingreme e escura, Ana desce a correr. Corre, sem sequer se aperceber do risco. A rua tem muitas pedras escurecidas e perigosas, que com facilidade, tal como uma faca afiada lhe poderão cortar em mil pedaços a beleza que irradia da sua cara brilhante. A música que faz questão de conservar bem perto dos seus ouvidos, não é suficiente para adormecer a sua ânsia e os seus pensamentos são escuros (como a rua). O sol bate intensamente, e nem mesmo os óculos de sol - bem escuros, conseguem filtrar milhentos raios de luz que viajam incansavelmente na sua direção. A viagem é fascinante, o medo de cair dum dos seus extremosos saltos, a música que entra em força pela alma dentro e a incapacidade de perceber quanto falta para o fim é fascinante. Ana adora esta rua, faz parte do seu ritual matinal, ao contrário do seu pequeno-almoço, ao contrário da companhia que acalenta um dia ter, mas que nunca aparece. Fica-se por um cigarro nos seus belos lábios, que rapidamente se consome em cinzas. Encandeada, conta os segundos que faltam até ao fim da rua, aí sai do seu mundo e como toda a gente entra num autocarro cheio de pessoas, que, tal como ela vivem ansiosas, tal como ela estão sempre apressadas e que tal como ela, disfarçam sempre a sua solidão interior. Ana só foge da rua, que já é parte do seu ser, que é cúmplice de milhentos pensamentos, uma vez por ano, quando o cheiro a sardinha, embrulhado em mil balões luminosos e algazarra popular ocupam o seu espaço intimo. Não partilha o seu caminho favorito com ninguém, porque durante o resto do ano, ninguém desceu a rua lado a lado com ela, ninguém lhe perguntou as horas, para onde ia ou se lhe chegava como companhia – a solidão.