sexta-feira, agosto 19

Beijo à sombra

-Esconde-te! É a tua vez. Escondo a cara; conta até chegar à vintena. Contarei o mais devagar que consigo. Luto contra a vontade: quero ver-te rapidamente. Sinto os teus passos a afastarem-se. Algumas folhas soltas estalam; consigo perceber a tua respiração. Um coração aflito de criança bate a cem. Subitamente um silencio atroz. Ainda não cheguei ao fim da contagem. Acelero a respiração - prometi que contava honestamente, mas não consigo esperar mais: quero ver-te muito. Aproveito os segundos e imagino a tua cara, foco-me no teu sorriso malandro, nos teus olhos que me adormecem de ternura. A distancia parece crescer à velocidade da luz. Sinto palpitações, estou quase lá: …19,20! Abro os olhos, coração acelerado e sinto-te. Os teus lábios tocam na minha testa e dás-me um abraço. Como eu queria ter coragem para te dizer o que sinto. Temo que fujas e deixes de tocar com o meu olhar e abraço. Já é tarde, ouço a voz da tua mãe do outro lado da colina. Lanças um sorriso e correr até desapareceres no horizonte esverdeado. Fecho os olhos e deixo-me entorpecer.
A manhã acorda com uma neblina baixa que salienta o azulado do céu. Deitado, sinto a caricia da relva e o toque (ainda) meigo do sol. A minha bicicleta descansa ao meu lado. Toco-lhe com a mão, como se imaginasse tocar em ti. Ouço a tua voz, pedalas na minha direcção. Não te esqueces-te do nosso passeio. Apenas temia que os teus pais não te deixassem vir. Já sinto o teu sorriso: levanto-me e preparo a bicicleta. Coloca o saco às costas com a merenda do passeio, a minha, a nossa merenda. Já na estrada pedalámos lado-a-lado. A tua sombra toca na minha. Ambas se fundem numa só e insistem em aparecer à nossa frente. Se calhar é para nos lembrar que, talvez, talvez um dia as nossas almas viagem como a sombra: embaladas e fundidas numa só. Mas, nunca presas- a pairarem uma sobre a outra - porque é esse o nosso desejo. Mesmo quando estiver só, imaginarei que a tua sombra está lá, que se fundiu numa só e me acompanha silenciosamente.
O verão passa depressa, tudo passa depressa. Voltei ao Porto, foste para Estoril. Raramente trocamos mensagens. Ouvi dizer que tinhas um namorado. Não quero saber: nunca te perguntarei. Vivo ancorado aos nossos momentos. Por vezes questiono-me se devia ter verbalizado o que senti, sinto. Não o fiz porque temi perder-te. E se o que eu sinto é reciproco - não existirão palavras suficientes para o dizer! Finjo que foi reciproco e que tu tal como eu - por medo - não o murmuraste ao meu ouvido. Penso no beijo que me deste no último dia. Disseste-me: quero saber o que é beijar um rapaz; fechámos os olhos e deixamos que os lábios se aproximassem. Lembro-me, que momentos antes, os teus lábios pareciam ainda mais avermelhados e aveludados que o costume. Fechei os olhos, fechaste os olhos e eternizamos o momento. Ainda hoje penso em ti, sabes? Beijo outras mulheres e procuro o teu sabor. Procuro sentir o que senti: mas não consigo. Espero que o que o destino aproximou e afastou - volte a aproximar.
Desejo o melhor para ti. Espero que recebas esta carta - usei apenas o teu nome e a cidade (em que penso tu estares).
Desculpa, insistir, mas ainda quero ver um luar ao teu lado.
Mil beijinhos, Márcio.